sexta-feira, 3 de abril de 2015

Sonhos

              Não era um dia como outro qualquer: seus olhos se encontraram. Mesmo a quilômetros de distância, seus olhos se tocaram ao olhar para as mesmas palavras. Há tempos nada compartilhavam: Nem palavras, nem abraços, nem qualquer curta distância entre seus corpos, nem pensamentos e tampouco olhares. Talvez vez ou outra respirassem o ar da mesma cidade, mas em momento algum se tocaram disso. Falaram bobagens e compartilharam sorrisos. Bobos.

               E ao chegar ao jardim ela caiu num labirinto subterrâneo e escuro, mas não gritou por socorro. Percorreu por todas as entradas que pôde entrar e corredores os quais pôde correr, até que achou uma escada, e a subiu numa espécie de sótão. Lá havia uma mesinha de madeira empoeirada, com dragões talhados em suas pernas, uma cadeira velha, e sobre a mesa havia um gato preto dormindo sobre uma almofada roxa, uma caneta-tinteiro e um bloco de anotações onde na primeira página se lia “Conte-me seus sonhos”.

                Sentada, ela toca o gato e o acaricia, mas ele não se move. Então ela pega a caneta, olha para o amontoado de papel e tenta escrever algo, mas a caneta não funciona. “Tem de pingar a pena no tinteiro” disse um corvo que estava pousado num galho que adentrava no local através de uma janela que passou despercebida pelos olhos da garota. Ela olhou para o tinteiro e molhou a pena, mas lá não havia tinta alguma, então olhou para suas mãos, que sangravam, deixou sua seiva escoar para dentro do vidrinho e então usou o liquido como corante. Pôs-se logo a desenhar as palavras no papel:

                “Meus sonhos são lindos como não se pode descrever. Seus olhos brilham mais que o grande Antares, e seus olhares... São capazes de atingir precipícios mais profundos que a Fossa das Marianas e entender perfeitamente o que se passa lá. Suas vozes, tão suaves quanto a neve limpa que beija o pico das montanhas ao amanhecer, são capazes de fazer adormecer o mais bruto dos homens. Seus sorrisos, elegantes e sugestivos, abraçam e aquecem a alma de quem os fita. Suas faces são tão pretensiosas quanto se pode ser quando assim querem, e tão angelicais quando desprovidas de outras intenções. Meus sonhos me acompanham até onde podem acompanhar, e além. Pois assim os levo: até onde quero que estejam. São meus sonhos e ninguém pode jamais tirá-los de mim. Conto-te, papel, apenas o que quero contar, pois assim sou, e saibas que não mandas em mim ou em minhas mãos, muito menos em meus pensamentos, e contente-se com a breve descrição da infinita perfeição de meus sonhos, que jamais serão sonhados por ti, ou por qualquer um que se atreva a imaginá-los enquanto lê este punhado de frases. Meus sonhos são capazes de devorar a ti e a todos e mudar tudo do jeito que eles ou eu bem entendermos. Meus sonhos são capazes de acabar com o mundo ou criar outros quaisquer. Meus sonhos são tão poderosos quanto o poder se permite existir, e estamos ligados uns aos outros mais do que os elétrons ligam-se ao núcleo dos átomos, somos mais consistentes que o mais rude dos diamantes. Somos o início de tudo, e o eterno. Somos tudo que se pode ser.”



Ela olhou para a telinha mais uma vez. Era hora de dizer adeus. E assim fizeram.


Kuroi Kuroneko